Patrono Sérgio Faraco emocionou o público na abertura oficial da 70ª Feira do Livro
Em seu discurso, o escritor reforçou a importância dos livros como instrumentos de preservação do conhecimento
O escritor e patrono da 70ª Feira do Livro de Porto Alegre, Sérgio Faraco, emocionou o público presente na abertura oficial do evento, realizada na sexta-feira (1), ao destacar o livro como instrumento essencial para a preservação e transmissão do conhecimento no decorrer do tempo.
Faraco também reforçou sobre a importância de protegermos instituições que preservam o livro, como livrarias e bibliotecas. Conforme o autor, sem o livro, corremos o risco de perder a conexão com o conhecimento do passado e comprometer o nosso futuro.
Confira o discurso na íntegra:
Amigos, o que seria de nós sem os livros? Homem algum, por certo, é capaz de guardar na memória o que sua geração produz nas artes, nas ciências, e menos ainda o que produziram as gerações antecedentes, desde a antiguidade. Sem livros, um homem só poderia herdar de outro homem o tanto que ele soubesse, e o tanto que um homem sabe, por mais sábio que venha a ser, nada significa diante do que sabem todos os homens.
Tiveram o dom da maravilha nossos maiores. Eles intuíram que, se cada homem desenhasse em sua caverna o que aprendera sobre a vida, o produto de seu aprendizado não morreria com sua morte e haveria de ser compartilhado pelos que viessem depois. O legado rupestre, eis o berço do livro, e no livro, esta arca da aventura terrestre, passou a ser entesourado tudo o que foram, fizeram ou refletiram os humanos através dos séculos.
O passado do livro, contudo, é paradoxal. A mão que o construía era a mesma que o destruía.
Em Alexandria, os romanos incendiaram 700 mil papiros e derrubaram as paredes que tinham visto Euclides sistematizar seus Elementos de geometria, Eratóstenes calcular a circunferência da Terra e o médico Herófilo escrever um tratado pioneiro de Anatomia. Os mesmos soldados destroçaram a biblioteca de Cartago e o fogo ardeu por 17 dias para consumir seus 500 mil manuscritos. Da coleção de Pisístrato, em Atenas, salvaram-se das chamas, milagrosamente, duas obras que, pela primeira vez, tinham sido escritas: a Ilíada e a Odisseia.
Casos e mais casos de facinorosas labaredas.
Os 300 mil livros queimados por Leão III Isauro em Constantinopla, os códices maias que Diego de Landa considerou acervo do demônio, as razias da Inquisição Espanhola contra os manuscritos árabes em Granada e, já modernamente, a repulsa doentia das fraternidades universitárias da Alemanha contra centenas de milhares de obras alegadamente não alemãs, prenúncio do paroxismo nazista que sem demora assomaria: Thomas Mann, Benjamin, Brecht, Robert Musil, Erich Maria Remarque, Joseph Roth, Freud, Einstein, tudo virou cinza, insanidades que, em 1953, Bradbury fabulizou em seu extraordinário Fahrenheit 451.
Na contemporaneidade não se incendeiam livros, ao menos com tal frequência, mas fecham-se bibliotecas, fecham-se livrarias. Vê-las assim é tão desolador quanto vê-las calcinadas, por isolarem ou dispersarem conhecimentos que poderiam transmitir aos homens de hoje e do amanhã. E no mundo atual, como se fora uma compensação, ou uma mercê da pós-modernidade, dispomos de representações digitais de quaisquer conteúdos. Mas não toma o lugar do livro aquilo que não é físico, que não pode ser manuseado e até nem perdura, ou que é físico e morre quando morre sua tecnologia. Precisamos de bibliotecas, tornando-as organizadas, atualizadas, assim como precisamos de livrarias e de feiras como esta, com adesão do poder público para lhes abonar a permanência e assim concorrermos para imunizar a vida desse mentor de nosso passado, nosso presente e nosso futuro: o livro e seu saber. Que o salvemos para que nos salve.